Mutação Constitucional 1
As Constituições modernas são compostas de normas cujo conteúdo se mostra altamente abstrato. Essa abstração ou também, abertura, das normas constitucionais revela-se através da opção do legislador por vocábulos vagos, palavras imprecisas, que exigem, em ordem a tornar a norma compreensível e aplicável a uma determinada situação fática, sem dúvida alguma, atividade interpretativa.
A característica das normas constitucionais em comento permite a necessária evolução do Direito Constitucional por meio do fenômeno denominado, pela doutrina nacional e estrangeira, mutação constitucional.
Segundo José Joaquim Gomes Canotilho[1], afasta-se a idéia de que a Constituição é algo estático, rígido, indiferente às alterações da realidade, consagrando-se, assim, não obstante o exagero da afirmação de Karl Lowenstein, uma renovação e atualização permanente e continuada da Lei Maior (de acordo com Lowenstein, 'a constituição não é jamais idêntica a si mesma'), estando constantemente submetida ao pantha rei heraclitiano de todo ser vivo[2].
Com efeito, J.J. Gomes Canotilho defende que as mutações constitucionais consistiriam em alterações do âmbito ou da esfera da norma que ainda se podem considerar suscetíveis de serem incorporadas ao programa normativo (Normprogramm). Não se trata de realização de mudanças constitucionais que desemboquem na existência de uma realidade constitucional inconstitucional, ou seja, mudanças absolutamente incompatíveis com o mencionado programa da norma constitucional. A Constituição pode ser flexível sem deixar, contudo, de se apresentar de maneira firme e sólida.
De acordo com Gilmar Ferreira Mendes[3], as mutações constitucionais são provenientes da união da peculiaridade da linguagem constitucional, polissêmica e indeterminada, com os fatores externos de ordem econômica, social e cultural, que a Magna Carta procura regular e que, dialeticamente, interagem com ela, gerando leituras sempre renovadas das mensagens esboçadas pelo constituinte.
Ademais, a partir de lição de Miguel Reale, colacionada por Gilmar Ferreira Mendes, as mutações constitucionais seriam alterações de significado dos preceitos da Constituição, em razão de modificações no âmbito histórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação, verbis: '[...] Muitas e muitas vezes, porém as palavras das leis conservam-se imutáveis, mas a sua acepção sofre um processo de erosão ou, ao contrário, de enriquecimento, em virtude da interferência de fatores diversos que vêm amoldar a letra da lei a um novo espírito, a uma imprevista ratio iuris. Tais alterações na semântica normativa podem resultar (a) do impacto de valorações novas, ou de mutações imprevistas na hierarquia dos valores dominantes; (b) da superveniência de fatos que venham modificar para mais ou para menos os dados da incidência normativa; (c) da intercorrência de outras normas, que não revogam propriamente uma regra, em vigor, mas interferem no seu campo ou linha de interpretação e (d) da conjugação de dois ou até três fatores acima determinados'.
Em tempo, Konrad Hesse[4] assevera que a mutação constitucional tem a função, na visão do Tribunal Constitucional Federal Alemão (Bundesverfassungsgericht) e da doutrina alemã atual, de modificar, de que maneira for, o conteúdo das normas constitucionais de modo que a norma, conservando o mesmo texto, recebe um significado diferente.
[1] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2008.
[2]Julián Marías ensina que Heráclito era de Éfeso, na Ásia Menor. Viveu entre os séculos VI e V. Dizem que era da família real de Éfeso e estava destinado a reger a cidade, mas renunciou e se dedicou à filosofia. Existem delicados problemas de cronologia entre Xenófones, Parmênides e Heráclito. São aproximadamente contemporâneos, mas Heráclito se move dentro da dialética parmenidiana do ser e do não ser e, portanto, pode ser considerado filosoficamente sucessor de Parmênides. Teofrasto diz que era melancólico. Por seu estilo um tanto sibilino os gregos o apelidaram de 'Heráclito, o Obscuro'. [...] Heraclito afirma taxativamente a variação ou movimento das coisas: tudo corre, tudo flui. Ninguém pode se banhar duas vezes no mesmo rio porque o rio permanece, mas a água já não é a mesma. A realidade é cambiante e mutável. Por isso a substância primordial é o fogo, a menos consistente de todas, a que mais facilmente se transforma. Ademais, diz ele, a guerra é o pai de todas as coisas. Ou seja, a discórdia, a contrariedade é a origem de tudo no mundo. O mundo é um eterno fogo que se transforma (MARÍAS, Julián. História da Filosofia. Tradutora Cláudia Berliner. 1 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004).
[3] MENDES, Gilmar Ferreira. et. al. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
[4]HESSE, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional Limites da Mutação Constitucional. Tradutor Inocêncio Mártires Coelho. 1 ed. Saraiva: São Paulo, 2009.
[5]BASTOS, Celso Ribeiro. et. al. Interpretação e Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Saraiva, 1982.