MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL - Limites
As influências codicistas do século XIX foram importantes para a evolução do pensamento constitucional. O modelo positivista tinha resultado efetivo em relação às normas que tratavam da estrutura organizatória do Estado. Nos demais casos, o positivismo apresentava-se insuficiente em razão da delimitação do conteúdo das disposições normativas.
Já com a idéia de que a efetividade constitucional somente é alcançada quando os indivíduos se identificam (ainda que pouco) com as normas que lhes são impostas, o desenvolvimento do discurso constitucional começa a adaptar-se às exigências do processo concreto de aplicação da Constituição. Como uma necessidade própria do sistema, o pensamento constitucional passa a compreender a abertura de algumas das normas constitucionais.
Nesse cenário, nasce a concretização das normas que, desafiando a efetividade constitucional buscada pelos Estados Constitucionais, deve saber conciliar os vetores normativos (margens semânticas decorrentes do sistema aberto) com a segurança jurídica exigida pelo discurso constitucional.[1]
Um modelo dinâmico de Constituição deve trazer consigo a vontade popular acompanhada da segurança jurídica. Ambas estão ligadas diretamente às pretensões garantísticas das democracias constitucionais contemporâneas.
A segurança jurídica nasce com concretização da norma e não com a simples previsão de um direito por um texto escrito. A constante busca do Estado Constitucional exige a realização dos fins do discurso constitucional que imprescinde da mutação constitucional. Somente um processo informal é apto a imediatamente atender a demanda que o reclama. Contudo, a finalidade para a qual foi criada uma Constituição não deve ser buscada a qualquer custo, isso poderia gerar a subversão de valores e a inclusão clandestina de outros não desejados originariamente.
A mutação constitucional não deve realizar-se de forma irracional e transpor os limites traçados pela própria ordem constitucional. Ademais, não é possível a negação de que a própria literalidade do preceito normativo já impõe, naturalmente, limites à abrangência do texto jurídico nele expressado.
Importante neste contexto é a digressão feita por Gilmar Mendes[2] ao mencionar que não somente os textos jurídicos, mas sim quaisquer textos, estão sujeitos à ação do tempo “que neles atua para consolidar, modificar ou , até mesmo, sepultar de vez alguns dos seus múltiplos significados.”
Os limites existem, isto é um fato, mas, sua correta definição dependerá da concepção da expressão mutação constitucional. Uma vez compreendida como uma nova leitura do comando normativo, variável conforme o contexto em que se realiza, encontrará seus limites idênticos aos determinados para a interpretação constitucional, pois, neste aspecto, assemelham-se.
Diferentemente, situação mais preocupante ocorre quando o tratamento dispensado à mutação constitucional for o de um fenômeno decorrente de diversos fatores complexos conjugados simultaneamente [3].
A importância da tarefa de demarcar a atuação do referido fenômeno constitucional no ordenamento jurídico brasileiro foi atribuída pela Carta da República, principalmente, ao Supremo Tribunal Federal a quem cabe zelar pela integridade e efetividade do discurso constitucional.[4]
Deve-se evitar a subversão de valores e a inclusão clandestina de outros não desejados originariamente. Assim, não podemos negar que mutação constitucional não permite excessos. Não deve realizar-se de forma irracional e transpor barreiras delineadas pela própria ordem constitucional.
Uma vez verificada a existência de limites à mutação constitucional necessário se faz a árdua tarefa de identificá-los. A importância de tal trabalho é possibilitar a percepção do fenômeno e, principalmente, aceitá-lo como legítimo, ou, na pior das hipóteses, se constatado o excesso/desvio, considerá-lo, em verdade, uma mutação inconstitucional.[5]
Não há unaminidade na doutrina acerca de um rol identificador de cada um dos possíveis limites. Ora preocupa-se com a legitimidade do fenômeno, ora com o conteúdo das alterações. Há também quem classifique os limites de acordo com os aspectos subjetivos e objetivos. A seguir, serão destacadas as informações mais relevantes para o texto.
O primeiro aspecto a ser considerado refere-se à legitimidade do fenômeno em si. Considerando que, no pensamento jurídico atual, é aceita a distinção entre texto e norma e, também, que uma releitura (ou nova leitura) de um texto jurídico é capaz de gerar normas distintas, questiona-se quais são os limites para que a mutação seja operada pela via interpretativa.
Não há dúvidas. Ainda que trazendo novidades, uma releitura não pode ultrapassar a essência originária da norma interpretada. Não deve atribuir significados opostos ou inaceitáveis em relação ao próprio texto jurídico interpretado. Se durante uma interpretação desvirtuada forem trazidos novos preceitos, eles não poderão ser aceitos pois decorrentes de intérpretes que, subvertendo seus papéis, tornam-se em legisladores sem mandato.[6]
Consequência necessária da ausência de legitimidade é a preocupação em relação ao efeito irradiante que uma interpretação constitucional pode gerar. A necessidade da abertura do discurso constitucional não deve ser entendida como a liberdade absoluta do intérprete. Ao contrário, o próprio texto constitucional seria conivente com alterações por ele mesmo não permitidas. Uma eventual leitura constitucional equivocada refletirá em todo o ordenamento jurídico e, até que seja realizado o devido controle, gerará danos irreparáveis.[7]
Imagine que uma nova leitura afete um núcleo essencial, isso ameaça a própria identidade da Constituição. Não se trata de algo impossível pois bem lembra Gilmar Mendes que, mesmo que intocáveis, as cláusulas pétreas dependem (como todo texto) da compreensão, não somente dos cidadãos que delas se beneficiam como também dos seus destinatários oficiais. Portanto, é imprescíndível a fidelidade à própria Carta para que o seu núcleo essencial seja protegido. [8]
Há também a importante classificação de Wellington Márcio Kublisckas que separa os limites em subjetivos e objetivos.[9]
Lembrando que a Constituição entrega-se aos seus destinatários oficiais (juízes, legisladores e administradores etc.), o primeiro aspecto subjetivo que surge é a postura ética do aplicador da norma constitucional. A consciência deste é, por si só, um limite, se não for o mais eficaz de todos. Deve o destinatário ter consciência de quando sua atuação é ou não é legítima.
Da mesma forma, a consciência jurídica geral também é uma barreira eficaz que controla as mutações constitucionais. Decorre, da influência da sociedade circundante sofrida pelo próprio desbravador do texto constitucional. Há uma espécie de relação de troca entre quem realiza a releitura de uma norma e os demais atores sociais – ao mesmo tempo que revela as normas, sofre influência do ambiente em que se deu tal revelação. É perceptível que, mais uma vez, não há total liberdade na definição do alcance da norma constitucional pois o intérprete se encontra vinculado à consciência jurídica geral.
Não menos importantes, os limites objetivos apresentam-se também como instrumentos de controle da mutação constitucional. O primeiro deles, querendo evitar as já vistas mutações inconstitucionais, é o programa normativo. Lembrando que a interpretação respeita limites e que não é totalmente arbitrária, não há espaço para a inserções ou revelações conflitantes com a própria linguagem constitucional. Nesse aspecto, é possível a identificação do ponto da legitimação outrora mencionada por Gilmar Mendes. Afinal, se uma interpretação evidentemente subvertida ocorre, ela não será recepcionada pelo programa normativo que deve sempre atuar em conformidade com o espírito da Constituição. Será considerada ilegítima.
Para finalizar o assunto, ainda no aspecto objetivo dos limites às mutações constitucionais, todo processo informal de alteração da Constituição pela via interpretativa há de ser razoável e fundamentado.
A interpretação não se trata de uma atividade anárquica, deve ser justificada. No mundo jurídico, a obrigatoriedade da motivação atua não só na esfera judicial como na administrativa e na legislativa – na última, de forma mitigada pois os votos dos parlamentares não precisam ser motivados. A fundamentação é inerente ao sistema jurídico pátrio contudo sozinha não basta. Uma motivação desprovida de nexo não permite a sua finalidade maior, qual seja, o controle da atividade que eventualmente gerará a mutação constitucional. Assim, motivação e racionalidade caminha juntas.
A racionalidade exige que a argumentação seja compreensível pois além de amparar o ponto de vista do intérprete sustentará o próprio fenômeno dela decorrente. Como processo informal que é, a mutação constitucional deve se amparar em construções sólidas e legítimas sob pena de, ainda que realmente necessária, não resistir ao controle que sofrerá.
São os limites (qualquer que se possa identificar) que estabelecem os paradigmas que definem a legitimidade de uma mutação constitucional bem como se sua atuação ocorreu ou não às margens do sistema jurídico. São verdadeiros instrumentos de controle, inclusive social, que determinam e diferenciam se o que há é uma mutação constitucional ou uma mutação inconstitucional.
Notas:
[1] ALMEIDA FILHO, Agassiz. Introdução ao Direito Constitucional. 1. Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008. p.196
[2] MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 131. .
[3] Em razão do seu destaque e da sua interrelação com o processo de concretização da Constituição, há autores, que preferem defini-la, assim como Jellinik, um fenômeno e não simplesmente atribuir-lhe um conceito. A relevância da distinção reside na possibilidade de, assim compreendida, ratificar a possibilidade da sua atuação junto ao discurso constitucional, ainda que ausente um conceito operativo.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Ob. cit. p. 133
[5] KUBLISCKAS, Wellington Márcio. Emendas e Mutações Constitucionais: Análise dos Mecanismos de Alteração formal e informal da Constituição Federal de 1988. 1.ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 156.
[6] MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Ob. cit. p. 132.
[7 ] Ob. cit. p. 132.
[8] Ob. cit. p. 133.
[9] KUBLISCKAS, Wellington Márcio . Ob. cit. p. 153.